quarta-feira, janeiro 04, 2012

U. Eco: faz falta "uma teoria da filtragem"

A revista brasileira Época acaba de publicar uma entrevista com o semiólogo e romancista italiano Umberto Eco, que tem vários motivos de interesse para o âmbito da literacia sobre os media e, em particular, sobre a Internet. Aqui fica um excerto, ainda que se recomende a leitura integral desse documento:

(...) ÉPOCA - O senhor tem sido um dos mais ferrenhos defensores do livro em papel. Sua tese é de que o livro não vai acabar. Mesmo assim, estamos assistindo à popularização dos leitores digitais e tablets. O livro em papel ainda tem sentido? PROFESSOR O pensador e romancista italiano Umberto Eco completa 80 anos nesta semana. Ele está escrevendo sua autobiografia intelectual (Foto: Eric Fougere/VIP Images/Corbis) 
Eco - 
Sou colecionador de livros. Defendi a sobrevivência do livro ao lado de Jean-Claude Carrière no volume Não contem com o fim do livro. Fizemos isso por motivos estéticos e gnoseológicos (relativo ao conhecimento). O livro ainda é o meio ideal para aprender. Não precisa de eletricidade, e você pode riscar à vontade. Achávamos impossível ler textos no monitor do computador. Mas isso faz dois anos. Em minha viagem pelos Estados Unidos, precisava carregar 20 livros comigo, e meu braço não me ajudava. Por isso, resolvi comprar um iPad. Foi útil na questão do transporte dos volumes. Comecei a ler no aparelho e não achei tão mau. Aliás, achei ótimo. E passei a ler no iPad, você acredita? Pois é. Mesmo assim, acho que os tablets e e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para entretenimento que para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas páginas de um livro. Isso ainda não é possível fazer num tablet. 
ÉPOCA - Apesar dessas melhorias, o senhor ainda vê a internet como um perigo para o saber?
Eco -
 A internet não seleciona a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta um desserviço ao internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso. Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia. Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. Vamos tomar como exemplo o ditador e líder romano Júlio César e como os historiadores antigos trataram dele. Todos dizem que foi importante porque alterou a história. Os cronistas romanos só citam sua mulher, Calpúrnia, porque esteve ao lado de César. Nada se sabe sobre a viuvez de Calpúrnia. Se costurou, dedicou-se à educação ou seja lá o que for. Hoje, na internet, Júlio César e Calpúrnia têm a mesma importância. Ora, isso não é conhecimento. 
ÉPOCA - Mas o conhecimento está se tornando cada vez mais acessível via computadores e internet. O senhor não acha que o acesso a bancos de dados de universidades e instituições confiáveis estão alterando nossa noção de cultura?
Eco -
 Sim, é verdade. Se você sabe quais os sites e bancos de dados são confiáveis, você tem acesso ao conhecimento. Mas veja bem: você e eu somos ricos de conhecimento. Podemos aproveitar melhor a internet do que aquele pobre senhor que está comprando salame na feira aí em frente. Nesse sentido, a televisão era útil para o ignorante, porque selecionava a informação de que ele poderia precisar, ainda que informação idiota. A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento. A longo prazo, o resultado pedagógico será dramático. Veremos multidões de ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos e busca de notícias irrelevantes. 
ÉPOCA - Há uma solução para o problema do excesso de informação?
Eco -
 Seria preciso criar uma teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação cotidiana com a internet. Fica aí uma sugestão para as universidades: elaborar uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem para o bem do conhecimento. Conhecer é filtrar. 
(...)
(Crédito da foto: Eric Fougere/VIP Images/Corbis)

ACTUALIZAÇÃO (5.1):

No Facebook, participei num pequeno debate sobre esta parte da entrevista de U. Eco. Por haver, de vários intervenientes, contributos interessantes acerca da falta que faz uma 'teoria da filtragem', deixamos aqui os pontos essenciais desse debate:


  • Manuel Pinto Habitualmente, quando se refere a filtragem, alude-se a conhecimentos, capacidades e competências para compreender, avaliar, contextualizar, rejeitar, editar e re-utilizar significativamente dados e informação. Inerente a estes processos está a capacidade de validar. Todas estas dimensões são inerentes -e, em diria, cruciais para a literacia informativa e mediática, não apenas do ponto de vista do utilizador crítico, mas também do produtor, que cada vez com mais frequência são uma e mesma pessoa.
    há 18 horas ·  ·  1
  • Manuel Pinto Será que U. Eco, com a proposta de uma 'teoria da filtragem', sugere ir mais além? Em que sentidos? Com que alcance? Apoiados em que dimensões? Alguém tem contributos a dar, neste plano? Por mim, sou levado a pensar nos estudos jornalísticos de gatekeeping, nos processos de selectividade (e de cognição social) com que valorizamos e elegemos (e inerentemente excluímos) assuntos, propostas, conteúdos e formatos. Precisamos de trabalhar estas questões...
    há 18 horas · 
  • João Simão Creio que a tónica de uma filtragem já existe de forma incipiente na pesquisa da Google. O google +1 permite dar mais importancia a certas pesquisas que a outras. Outra forma que terá de evoluir mais será baseada na capacidade de leitura semantica dos mecanismos de pesquisa que através dos nossos hábitos, visitas e temas serão capazes de ir para além de uma pesquisa dedicada apenas às palavras chave mas a todo o contexto que envolve o utilizador. O excesso de informação implica um data mining e sem dúvida que a teoria do gatekeeping pode ser extrapolada do jornalismo. E mesmo no jornalismo de secretária com fontes on-line se repararmos o gatekeeper é cada vez mais importante no jornalismo...
    há 18 horas · 
  • Rui Couceiro às vezes confiamos demasiado - contra mim falo - no gatekeeping. Penso que a maioria das pessoas confia em demasia; não valida, limita-se a aceitar acriticamente. Esse parece-me ser um problema que está a montante, embora profundamente interligado àquilo que Eco refere.
    há 18 horas · 
  • Manuel Pinto Contributos relevantes para o tema: web semântica, data mining, gatekeeping... outras achegas?
    há 18 horas ·  ·  1
  • Rui Couceiro ‎(Em termos de web semântica a Google é, de facto, perita.)
    há 17 horas · 
  • Francisco Teixeira A minha achega é que se leiam, estudam e discutam os Clássicos, os canônicos e os marcadamente qualificados do ponto de vista cultural, estético, social, filosófico, etc. Só a cultura pode filtrar. A ideia de que mecanismos formais/automáticos de filtragem de dados são relevantes para o processo selectivo da informação não é mais que recair, viciosamente, no excesso de dados/informação, já que todos os processos selectivos automáticos são, por definição, e a partir de certa altura, eles próprios excessivos, tendendo a somar mais e mais ao já existente. Aliás, temos bem que os processos automáticos de filtragem sejam, cada vez mais, eles próprios mecanismos entrópicos, a exigirem mecanismos de filtragem formal. Não me parece, assim, que quaisquer mecanismos formais de selecção da informação circulante sejam muito diferentes, na sua substância, dos mecanismos naturais de selecção (no sentido de "linguagem natural"), de que a "cultura", no sentido de erudição/instrumentação, é o único seleccionador. Daí que Eco ache que a NET é útil para o sábio. Talvez seja.
    há 15 horas · 
  • João Simão ‎@ Francisco Teixeira - Em alguns aspetos concordo com o que diz, no entanto parece-me impossível ao ser humano conseguir processar e filtrar a quantidade de informação disponível pela internet. Recordo que os inicios dos computadores remontam aos cartões microperfurados para processar os dados dos censos dos EUA, isto para referir que quando perante grandes quantidades de informação necessitamos de usar o processamento informático (informação automática). E se o sistema de filtragem for eficiente quantos mais dados inserirmos no sistema mais exactos serão os resultados. Em ultima análise estamos quase a falar de inteligência artificial como forma de selecção. Mas sem exagerar nas "futurologias" creio que a web semântica será num futuro breve uma boa forma de pesquisa, sempre é claro aliada à capacidade humana de saber pesquisar e aí dou-lhe razão quando fala em cultura, conhecimento, e capacidade intelectual para referenciar e cruzar informações para que a pesquisa seja eficaz e eficiente.
    há 15 horas · 
  • Francisco Teixeira A web semântica é/será magnífica, sem dúvida, parecendo, mas só parecendo, aproximar-se da linguagem natural, pelo menos no ambiente digital da web, e apenas "dentro"dele. Mas o problema a que me referia não é esse, nem me parece que seja esse o problema a que Eco se dirige (nem , parece-me, o Manuel Pinto, quando fala da possibilidade de uma "teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação cotidiana com a internet"). O problema não é o de encontrar a informação disponível, mas de a seleccionar de entre o que está disponível, que será sempre imenso, na verdade sempre excessivo. Por isso dizia que a possibilidade de novos mecanismos formais de selecção, para as quais se criam, sucessivamente, novas instrumentações formais (motores de busca de motores de busca, por exemplo), nunca serão solução, mas "apenas" complexificação, que é aquilo que se espera que seja o resultado da cultura, incluindo da cultura tecnológica. Na verdade, concordo com a "indicação" do Manuel Pinto, a selecção pode ser aprendida através de uma "disciplina prática", i.e., do trabalho operativo/interpretativo da análise literária em geral, i.e., da cultura, i.e., do artesanato do texto original e próprio, primeiro durante um elevado e condensado período de formação e, depois, durante toda a vida. Mas estamos de acordo, João, certamente.
    há 14 horas ·  ·  1
  • Ângela F. Marques ‎"Conhecer é filtrar" - aí está uma frase a repetir sem fim.
    há 12 horas ·  ·  2
  • Manuel Pinto Vale a pena continuar nestas indagações e o quadro aqui esboçado pelas diferentes participações é já muito interessante. Sem querer acrescentar muito, gostava de dizer que temos aqui vertentes de pendor teórico-epistemológico e vertentes de pendor pedagógico.
    há 52 minutos · 
  • Manuel Pinto Por outro lado, pessoalmente sou sensível a duas dimensões: uma é de natureza 'política' e refere-se às balizas, orientações, constrangimentos, potencialidades e interesses implicados no quadro global em que se inscrevem as soluções concretas relativas ao acesso, uso e produção da informação. É uma dimensão que, por vezes, parece evaporar-se de alguns discursos técnicos ou técnológicos. A outra relaciona-se (ainda que indirectamente) com esta e refere-se aos silêncios e aos processos de silenciamento de realidades e dimensões relevantes da vida social e cultural que são como que o lado nocturno daquilo que, de forma construída, acede à visibilidade. Sem ter em conta este último aspeto, toda a seleção e filtragem se pode tornar um logro.


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