domingo, novembro 13, 2011

Telespectadores sedados com baixa reactividade emocional

(Coluna publicada no Diário do Minho de 13.11.2011)


Por Eduardo Jorge Madureira

Desenvolvida pelo médico português António Egas Moniz, a lobotomia, que, segundo refere a Wikipédia, se deve, mais apropriadamente, chamar leucotomia, é uma intervenção cirúrgica no cérebro, tendo sido a primeira técnica de Psicocirurgia. O procedimento, esclarece ainda a Wikipédia, conduz os pacientes a um estado algo sedado de baixa reactividade emocional.

A Wikipédia garante que a lobotomia, tal como António Egas Moniz a praticou, já não se usa devido aos seus efeitos secundários severos. Quem, todavia, observa determinados programas televisivos não pode estar certo de que tenham, de facto, terminado os procedimentos que conduzem a “um estado algo sedado de baixa reactividade emocional dos pacientes” telespectadores.

Em vez do Lobotomobile, usado, outrora, nos Estados Unidos da América pelo cirurgião Walter Freeman, que percorria todo o país, aplicando uma variante da lobotomia que, garante a Wikipédia, consistia em espetar um picador de gelo directamente no crânio do doente num ponto imediatamente acima do canal lacrimal com a ajuda de um martelo, que, a seguir, se rodava para destruir as vias aí localizadas, são certos programas televisivos que se encarregam de praticar a intervenção lobotómica. Em vez de um Walter Freeman, temos uma Teresa Guilherme a intervir nos cérebros, não com picadores de gelo, mas com as mandíbulas.

Ao que parece, o negócio do programa que a senhora conduz, “Secret Story” ou “Casa dos Segredos”, faz-se à custa de segredos. Os concorrentes têm, cada um, o seu para guardar e os dos outros para desvendar. Ganha o reality show quem for mais bem sucedido nesse intento. Cada concorrente dispõe de dez mil euros. Se achar que sabe qual é o segredo de outro concorrente, dirige-se a um sítio designado por “confessionário” e revela-o. Se o denunciador acertar, fica com todo o dinheiro do denunciado; se perder, o denunciado ganha o dinheiro do denunciador. A acreditar no que se lê na imprensa e se o site do programa não mente, há um concorrente que se apresentou dizendo ter um segredo invulgar: “Matei um homem”.

A estupidez está de tal modo entranhada no planeta televisivo que não há voz que se ouça a reclamar contra o gesto indigno e imbecil de quem resolveu candidatar-se a ganhar dinheiro graças à circunstância de ter causado a morte de uma pessoa, pouco importando para o caso se voluntaria ou involuntariamente.

Um programa que usa como isco o segredo de uma criatura que diz: “Matei um homem” não seria emitido por um canal televisivo decente. E se fosse, seria a decência dos telespectadores a dizer que um programa assim não deveria ser visto, o que, evidentemente, ditaria o seu fim rápido. Mas a decência, sempre abundante nas conversas, é escassa nos gestos, razão por que o programa tem sido dos mais vistos da televisão portuguesa (o mais visto na maior parte dos dias da semana que finda).

Embora em outros países – em Espanha, por exemplo – haja programas televisivos muito piores do que os que se podem ver nas televisões generalistas portugueses, há momentos em que a apatia generalizada dos telespectadores se interrompe. Na terça-feira, o diário espanhol El País noticiava que o El Corte Inglés tinha retirado a publicidade nos intervalos de um programa televisivo, intitulado La Noria, pelo facto de, no dia 29 de Outubro, este ter apresentado uma entrevista paga à mãe de um rapaz envolvido no assassinato de uma adolescente de 17 anos, ocorrido em 2009, em Sevilha. Esta presença televisiva suscitou a irritação de milhares de pessoas, que assinaram uma petição para que as marcas “retirem a sua publicidade de programas que pagam a familiares de criminosos”. O pedido foi escutado por diversas empresas mais ou menos conhecidas, como, por exemplo, a Bayer, a Bimbo, a Campofrío, a Nestlé, a Panrico, a President, a Puleva e, na semana que passou, o El Corte Inglês, que deixaram de querer que a sua publicidade aparecesse nos intervalos do programa do canal Telecinco.

A decisão das marcas, que não querem, nem podem desagradar aos potenciais consumidores, além de ter um efeito publicitário simpático, pois, como notava alguém citado pelo El País, fazem “uma campanha de imagem que lhes sai de borla”, provocou um enorme prejuízo ao canal televisivo espanhol. O que é bom. E quanto mais elevado for o dano, mais rapidamente o canal aprenderá que a falta de decência pode servir para aumentar as audiências, mas pode também causar um significativo rombo financeiro. Muito se ganharia se este tipo de aprendizagem também fosse proporcionado aos canais televisivos quando eles apostam na lobotomização dos telespectadores.

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