domingo, outubro 19, 2003

Ainda o Big Brother num manual escolar

A questão das referências ao programa Big Brother num manual de Português do ensino secundário, trazida a lume há oito dias pelo Público, continua a fazer ondas. O Expresso volta ao assunto em diversos locais da sua edição de hoje e de uma forma que não ajuda a dissipar algumas confusões que têm, a meu ver, caracterizado esta polémica. Assim:

Há que distinguir entre introduzir referências mais ou menos desgarradas ao BB e quejandos e abordar o fenómeno televisivo e mediático na educação, para melhor o compreender e face a ele assumir uma posição activa e crítica.
Não sou um especialista em pedagogia, mas acho estranho que se possa defender que uma dimensão da realidade tão importante como a presença dos media no quotidiano dos alunos possa (e deva) passar á margem da educação escolar. Essa concepção algo esquizofrénica, de que uma coisa é a vida e outra é a escola a mim não me convence. Mais: julgo que é possível e desejável aprender e aprofundar competências que ajudem a um posicionamento esclarecido e crítico face aos media. Creio também que a escola tem, desde os seus níveis mais elementares, um papel insubstituível nessa tarefa. Aprender a comparar, a analisar tecnica e esteticamente notícias ou programas, em suma, aprender a ler televisão (e não só televisão) deveria figurar no currículo de formação básica dos cidadãos, na medida em que eles vivem e viverão cada vez mais num ecossistema profundamente marcado por esses meios.
Mas acho interessante que certas almas corram a denunciar aquilo que, num manual concreto, de forma provavelmente infeliz, procura traduzir uma ideia programática que julgo pelo menos merecedora de reflexão, e não se preocupem com o papel da escola na capacitação das crianças e adolescentes perante o universo mediático.
Fernando Madrinha vem hoje, no Expresso, desqualificar, "avant la lettre", os argumentos que qui proponho, ao escrever:
"Quando se diz ou escreve que certos programas televisivos, como alguns dos chamados ´reality shows´, contribuem fortemente para a dissolução do sistema de valores em que tem de assentar uma sociedade saudável e empenhada na formação dos seus jovens com razoáveis padrões de exigência, aparece sempre alguém a desvalorizar o assunto. Não raro, os que insistem nessa denúncia sã apontados como moralistas antiquados e retrógradoss, que não percebem o espírito do tempo".
E termina com esta "boutade"
"Mais ano menos ano ainda temos os directores da TVI e da "TV Guia" a definirem os programas e a aprovarem os manuais escolares". (Já agora, porque não também a RTP, ou mesmo a SIC ou a "TV Mais?")
Compreendo a preocupação de Fernando Madrinha e de outras pessoas que se indignaram com o caso do manual que esteve na origem da polémica. Mas, tanto quanto sou capaz de entender, parece-me que a terapia, implícita ou mesmo explícita, não é a mais urgente e eficaz. Porque, na linha do denunciado, bastaria extirpar os manuais (o tal e, eventualmente outros que trazem outras sugestões, porventura menos chocantes) e o problema estaria resolvido. Ora aqui é que reside, a meu ver o problema e não a solução. Não é tanto pela via da extirpação do culturalmente indigno que avançaremos na qualificação do ensino e da formação, mas pela via da inclusão de objectivos, conteúdos e métodos que ajudem os alunos a serem mais exigentes culturalmente, a alargar os seus horizontes culturais, colocando, nomeadamente, a televisão no seu devido lugar.
Ao centrar a crítica num fait divers, muita da reflexão produzida não tem contribuído para colocar aquela que me parece ser uma questão de fundo: a escola continua a formar analfabetos em áreas importantes da vida. Muito provavelmente, o modo como o referido manual procurou abordar o assunto foi desastrado (não analisei o caso). Mas, a reboque de um eventual erro, não se pode "jeter l´enfant avec l' eau du bain", como dizem os franceses. Ora sobre isso, os comentadores têm dito (quase) nada. Era sobre isso que valeria a pena gerar-se uma corrente forte de opinião. Era sobre isso que o Ministério da Educação precisava de ser confrontado e não tanto se vai mandar retirar o manual em causa.

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