Ainda a legibilidade da escrita
A escola tem um papel enorme a incentivar, a explicar, a analisar a imprensa escrita
José Carlos Abrantes, provedor do leitor do DN, 14.2.2005
"Aminha experiência de 22 escolas do 3.º ciclo e secundário, em dez anos de ensino, com apenas seis anos de tempo de serviço, sempre em substituições, porque sou professora provisória, apesar de profissionalizada, diz-me que os jornais não escrevem para todos. Este ano lectivo, estou a trabalhar com alunos de cursos profissionais. (...) O espanto foi sem fim! Primeiro estes alunos de 15 e 16 anos não compram jornais e se algum disse que lia eram os jornais de desporto, já era para mim uma alegria. Segundo: o que se verificou foi que não compreendiam o que liam e não eram capazes de explicar cabalmente os artigos, as crónicas ou as notícias em análise. (...) Os jornais deviam falar da nossa cultura, dos nossos méritos, das nossas inteligências, do nosso Portugal! Deviam atrair os jovens à leitura. Escrevem para todos? Redondamente não! Porque, se escrevessem para todos, os alunos do 8.º e 9.º ano saberiam ler e entender o que lá vem escrito."
O longo e-mail desta professora, A. L., é um questionamento directo à crónica anterior e levanta alguns problemas interessantes. Um deles já foi analisado pelo menos em duas outras ocasiões (O jornalis- mo como fonte de esperança, em 29-11-04, e O mundo, melhor que as notícias, 24-01-05). A leitora considera que se os jovens não lêem jornais é porque a escrita destes não é para todos. Ora, e sem rejeitar que pode haver responsabilidade dos jornalistas nas escolhas narrativas, nos temas escolhidos, nas opções editoriais de fundo, não se pode equacionar este problema como uma simples relação de causa-efeito. Os escritores invocados, "Garrett, Camilo, Gaspar Simões", e que "escreviam para todos", também não são lidos por todos os jovens e adultos, pese embora a qualidade da escrita. A escola tem um papel enorme a incentivar, a explicar, a analisar a imprensa escrita, mas só assume esse papel em iniciativas individuais de professores ou em disciplinas específicas para alguns, quando esta formação deveria ser... para todos. As políticas de educação têm ignorado sistematicamente esta dimensão, vital para pôr os alunos a ler jornais e a ter o prazer de os ler. Prazer que se adquire, se ensina, se explica. Nos lugares próprios, como é a escola. Também é verdade que uma imensa demagogia tem feito crer que a leitura dos media afasta da leitura dos clássicos, da "boa" literatura. Outra falha, salvo dignas excepções, é da própria imprensa que não soube ainda criar programas de incentivo de leitura dos jornais, estabelecendo condições para os fazer "viver" nos ambientes da juventude. A cada momento se pasma com a inacção sobre assuntos e iniciativas que poderiam, a médio e longo prazo, melhorar a relação dos cidadãos com a imprensa e os media. É mais simples dizer temos um índice de leitura muito baixo. Cruzemos os braços, pois. O mundo de hoje não funciona assim. Funciona com ousadia, iniciativa, atenção, planeamento, formação, abertura a novas ideias, a novos públicos. E quem assim funciona cresce, quem fica parado definha. Sejam pessoas, instituições, empresas ou nações.
A leitora levanta a questão da clareza da escrita. Volto ao assunto, pois tive acesso a um texto relevante sobre a legibilidade da imprensa, texto de origem francesa. O texto define quatro níveis na legibilidade e, sublinhe-se, vai buscar à psicologia cognitiva ensinamentos para a escrita de imprensa, sobretudo aos conhecimentos existentes nos processos cognitivos da leitura. Um bom exemplo e um reconhecimento de que, afinal, o estudo das Ciências da Educação e da Psicologia também tem os seus méritos.
1. Reconhecer. Trata-se do nível mais imediato do reconhecimento dos caracteres, da forma dos caracteres em relação ao fundo em que são inseridos, do tipo dos caracteres. Sabemos como por vezes se erra neste domínio letra muito pequena, um fundo que pode esbater a desejada nitidez do texto. Mas, segundo o texto, é um problema menor dado o profissionalismo na paginação.
2. Decifrar. É a "aquisição" do texto por quem o lê. Significa que as redacções devem estar atentas a tudo o que possa diminuir a capacidade de decifrar o texto, como foi reconhecido na crónica anterior, relativamente a frases aparecidas num suplemento especializado do DN "Em termos de múltiplos de mercado, a EADS transacciona com um P/E 2004E de 19,11x, a desconto face à sua principal concorrente a Boeing que apresenta um P/E 2004E de 21,16x."
3. Interpretar. Trata-se de perceber o que é reconhecido e decifrado. Estabelecer relações lógicas dentro do que está escrito. As palavras devem articular-se entre si, ter sentido como frases, as ideias encadear-se umas nas outras. Lê-se "Estes aspectos são difíceis de perceber pelos profissionais que, por definição, seguem a actualidade e interpretam as relações implícitas entre os factos muito mais facilmente do que a média dos seus leitores."
4. Figurar. Trata-se da vida do texto na cabeça de cada um, da sua inserção nos esquemas mentais dos leitores. Em vez de se perguntarem se os textos são compreensíveis (o que envolve uma resposta subjectiva), seria melhor que "os redactores e editores colocassem a si próprios questões mais técnicas e mais precisas a) com que representação poderão os leitores ficar da leitura deste artigo; e b) disporão eles dos esquemas necessários para construir essas representações?". Por exemplo, como pode um leitor do Porto, Aveiro ou Serpa, que mal conheça Lisboa, assimilar a terminologia das estradas que circundam a cidade? Se nem para um lisboeta é fácil...
* 'Études de Presse - Les notes du CDI - Comité National pour le Développement de l'Information', volume 1 - n.º 3 /2004.
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